30 de Abril de 2009 - 08h37 - Última modificação em 30 de Abril de 2009 - 08h37
Como se constrói um preconceito: toque de recolher para a juventude
Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Um assunto importante vem ocupando a atenção da mídia nos últimos dias e, dependendo da maneira como se conduz o debate e se aborda o problema, ela, a mídia, poderá estar contribuindo para a construção de mais um preconceito em nossa sociedade.
O leitor Edwilson Souza escreveu para esta Ouvidoria para manifestar sua opinião com relação ao assunto tratado na matéria Municípios paulistas adotam “toque de recolher” para menores, publicada pela Agência Brasil em 23 de abril: “achei uma solução excelente para ao menos tentar minimizar os atos infracionais cometidos por menores. Claro que a ‘garotada’ não será favorável pois, por sua natureza, o jovem é contra proibições. No entanto, sou do tempo em que a criançada tinha medo do ‘juizado de menores’ e até ficava mais alerta quando via aquela ‘baratinha’ (fusca branco e preto) passando pelo bairro. Quem sabe, um dia teremos um sistema de leis mais sérias que punam e/ou eduquem devidamente os ‘di’ menor. Até lá, o toque de recolher serve de instrumento para que a polícia possa tomar alguma ação com relação aos menores de idade.”
Talvez fosse interessante, então, que não houvesse menores de idade e que nascessemos todos adultos, já que eles são um problema que cabe à polícia “tomar alguma ação”? De certa maneira é isso que a sociedade de algumas cidades do interior paulista estão fazendo – eliminando menores de idade das ruas a partir de um certo horário.
Se a matéria da ABr inspirou o leitor a se manifestar sobre o assunto é sinal de que o tipo de abordagem pode estar incentivando o leitor a se convencer de que a medida é uma solução para acabar com a criminalidade infanto-juvenil. Na notícia, são ouvidos o juiz autor da determinação, um membro do Conselho Tutelar, e o delegado da cidade. Todavia, os principais atingidos e apenados, apesar de não terem sido formalmente condenados – os jovens, são totalmente ignorados.
Da forma como a ABr tratou a questão, os direitos desses cidadãos parecem não existir. Será que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, dá poderes ao Judiciário para legislar sobre a liberdade dos jovens ir e vir, como alega o juiz em sua entrevista? O que diz a nossa Constituição? Esse pode ser apenas o início para um debate mais aprofundado que considere tanto os argumentos dos magistrados quanto o contexto legal e o processo histórico de marginalização de uma parcela da juventude.
Em outra matéria:Secretário adjunto de Justiça de São Paulo é contra toque de recolher para menores, publicada no mesmo dia, a Agência Brasil apresenta um contraponto importante que permite ao leitor saber que a aparente “solução” para o problema pode ser encarada como um problema ainda maior, mas não fornece informações suficientes para que o leitor seja demovido de acreditar que os municípios que adotaram o toque de recolher estão no caminho certo para resolver questão desses “menores de idade”. E termina por ai a discussão na ABr.
É curioso como certas atitudes e certos procedimentos são usados ao longo da história por regimes autoritários como marca da intolerância, discriminando e separando os diferentes do convívio social. O nazismo, com apoio da opinião pública germânica, a princípio isolou os judeus nos guetos, impedindo-os de ir e vir livremente pelas cidades, depois implantou o toque de recolher confinando-os em casa a partir de certo horário, e, finalmente os exterminou. Na mesma época, os Estados Unidos fizeram o mesmo com os imigrantes alemães e japoneses, só não chegando a extermina-los. Mas, do que eram mesmo culpados judeus e imigrantes para merecerem tal discriminação? Isso é o que menos importa quando a opinião pública é conduzida por um sentimento de preconceito e intolerância. Sentimentos responsáveis pelos maiores crimes da história da humanidade e inclusive genocídios de que se tem notícia.
Hoje em dia, as regras que regem o Estado de Direito pressupõem a liberdade de cada indivíduo poder ser o que é e existir dignamente, ou seja, ser respeitado pelos outros e respeita-los, conforme os direitos individuais e coletivos da pessoa humana que disciplinam a coexistência social. Na prática, isso significa que ninguém pode ser considerado culpado por um crime que não cometeu ou por ser diferente dos demais ou ainda, simplesmente, por ser menor de idade.
Apesar de apenas 0,06% da população jovem se envolver em crimes contra a sociedade, toda uma geração está sendo punida por decisão de juízes de algumas comarcas do interior paulista. A determinação (sentença?): toque de recolher! Confinem-se os jovens em suas casas! Ou seja, atingir os jovens justamente naquilo que mais prezam: a liberdade de ir e vir quando e para onde bem desejarem.
Uma dentre outras numerosas possíveis abordagens da questão por uma agência pública de notícias seria verificar como anda a execução das políticas públicas para a infância e adolescência nos municípios citados nas matérias. Afinal, a medida do juiz também não deve ser interpretada como um indicador de que elas falharam e de que o estado está desistindo de educar e prevenir a violência preferindo punir indiscriminadamente?
As consequências da medida judicial podem ir muito além de números e estatísticas policiais conforme apresentado na matéria da ABr. Uma delas – a criminalização de toda uma geração, pode estar alimentando um preconceito contra nossos jovens, apartando-os do convívio social. Daí a decidir que eles devem ser exterminados pode ser apenas uma questão de tempo e de lugar. Hoje, em algumas comunidades, os jovens já são os alvos prediletos de grupos de extermínio. Para serem exterminados basta ser pobres, morar na periferia e estar reunidos na rua depois de determinada hora da noite.
Cabe à mídia, seja ela pública ou privada, arcar com sua responsabilidade de promover esse debate a partir dos limites da cidadania, do interesse público e do Estado de Direito, pois, fora deles, não há solução civilizatória.
Até a próxima semana.
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